quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Análogo ou não?

A escravidão no Brasil acabou em 1888, correto? Correto. Para muitos a questão era simples: o capitalismo não comportaria o trabalho escravo. A necessidade de mercado consumidor e de crescente aumento de produtividade impossibilitaria a escravidão. Simples assim. Então como é possível encontrarmos num jornal atual a seguinte notícia?

Fiscais resgatam 191 trabalhadores em situação análoga à de escravos


Mas antes de respondermos cabe outra pergunta: que raios significa "situação análoga à de escravos"? "Análogo" é o mesmo que parecido, semelhante sem ser igual. Ou seja, estamos falando de um trabalho quase escravo: não há a propriedade sobre o indivíduo, não há o comércio de seres humanos, mas a situação do trabalhador é praticamente igual a um escravo.
Na notícia acima lemos:
Segundo o Ministério do Trabalho, os lavradores eram agenciados através de um intermediário, que publicava anúncios de empregos, e eram mantidos dependentes por dívidas contraídas na compra de produtos. Eles não tinham acesso a água potável, alimentação e instalações sanitárias, estavam alojados em barracos de lona e sem assistência médica.
Poderíamos comparar também as condições precárias de moradia e alimentação, mas isto não define a escravidão em si. Do contrário, poderíamos pensar que um escravo bem tratado deixa de ser um escravo. O importante é notarmos a falta de liberdade para ir e vir e a dívida como forma de manter o trabalhador preso à terra. Estratégia, aliás, comum também no século XIX quando das primeiras experiências com imigrantes. O pessoal da 2a. séries deve se lembrar do chamado "sistema de parceria" segundo o qual o colono vinha para o Brasil por conta dos fazendeiros do café, mas precisava pagar os gastos da viagem e de seu consumo inicial no armazém da fazenda. Além disso, estabelecia-se que o colono era parceiro do cafeicultor, tendo seu pagamento como resultado da produção. Parte do café produzido era do colono.
Idealizado pelo senador Vergueiro (1778-1859), [o sistema de parceria] baseava-se em um contrato que destinava à família do colono um certo número de pés de café para o cultivo e uma determinada área de exploração para subsistência. A remuneração era proporcional ao montante de gêneros produzido pela família, descontadas as despesas de transporte, adiantamentos e recursos para a instalação inicial. Vergueiro adotou este sistema na Fazenda Ibicaba, de sua propriedade, localizada no município de Limeira. De lá, a prática se espalhou por São Paulo.

(Ana Silvia Volpi Scott e Oswaldo Mário Serra Truzzi. A utopia de Montenegro)
Tudo muito bom se não fosse a desconfiança dos colonos em relação aos fazendeiros: estes estariam "roubando" na pesagem e no valor do café produzido, de modo que os imigrantes trabalhavam muito e ganhavam cada vez menos (além da dívida que nunca se pagava!). Reparem, não se fala em salário! Não demorou muito para os colonos da Fazenda Ibicaba se sentirem iguais aos escravos de origem africana. Em 1856 estourou alí a Revolta dos Parceiros.
Bom, mas voltemos à questão original. Como fica o trabalho escravo, análogo ou não, em relação ao capitalismo. É um atraso? Não exatamente. Em geral onde encontramos trabalho escravo atualmente não há qualquer atraso. O trabalhador é tratado como escravo exatamente porque isto é lucrativo para o fazendeiro que economiza em salários e benefícios trabalhistas. Diante da fragilidade do trabalhador rural o uso da força e a enganação levam a esta situação. Para o fazendeiro cabe o lucro, este sim afinadíssimo com o capitalismo e a modernidade.

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