domingo, 5 de dezembro de 2010

O tempo

Vivemos reclamando que o tempo é curto. Muitas pessoas gostam de dizer que precisariam de mais uma ou duas horas por dia para poderem fazer tudo que precisam, em geral trabalho. Alguns sofrem com a mesmice do dia a dia, a repetição quase mecânica de dias idênticos, enquanto que quase todos dividem suas vidas em ciclos: a infância, a adolescência, o período escolar, o tempo de faculdade. "Não sou mais adolescente, agora tenho responsabilidade, é uma nova fase porque estou seguindo meu próprio caminho...". O caminho que, aliás, pode se transformar em, como no francês route palavra que dá origem a rotina, o caminho sempre percorrido, sempre repisado.
Representação de Cronos devorando um de seus filhos

Este tempo cotidiano, cíclico, os gregos (sempre eles!) chamavam de chronos. Ou melhor, usavam a fantástica figura da divindade Cronos para explicar esta imagem filosófica. Cronos era uma dividade de segunda geração (um titã), filho de Urano, o céu estrelado, um deus primordial. Casado com Réa, Cronos teve seis filhos, os cronidas e que viriam a ser as grandes divindades gregas. Eram seus filhos as três mulheres Héstia, Deméter e Hera e os três homens Hades, Posídon e Zeus, juntos abarcavam toda a vida terrestre: as mulheres representavam respectivamente os laços familiares e o lar, a terra cultivada e as colheitas, e a família constituída, enquanto os homens seriam o mundo dos mortos ou submundo, o mundo das águas e mares, e o céu.
Cronos, no entanto, receava ser destronado. Um oráculo havia lhe dito que seu reinado como Deus dos Deuses seria encerrado por obra de um de seus filhos e, para evitar que isto acontecesse, o velho titã engolia cada um assim que nascia. Porém, Réia salvou Zeus dando a Cronos uma pedra enrolada em panos. Ao crescer Zeus decidiu se vingar com a ajuda de Métis (a prudência) que lhe deu uma poção capaz de fazer Cronos vomitar os outros filhos engolidos. Depois disso Zeus matou Cronos, tornando-se o Deus dos Deuses.
Essa imagem de Cronos engolindo seus filhos é extremamente rica, pois ilustra a ideia de que o tempo cria todas as coisas, todas as relações humanas e depois as engole. Ou seja, o tempo cíclico, ano após ano. Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, brincou com esta construção ao dizer que "nós matamos o tempo e o tempo nos engole", reforçando e ironizando nossa condição de reféns de Cronos na vida contemporânea.
Mas para os gregos ainda haveria outro tipo de tempo, filho do próprio Cronos, chamado Kairós, "o tempo oportuno". Ou seja, o tempo que se repete de forma inevitável é diferente do tempo bem aproveitado, o momento certo. Kairós é muitas vezes entendido como parte dos demais deuses, como se estivesse misturado a outros elementos básicos da vida, como Atena (a inteligência), Eros (o amor) ou Aevum (a eternidade).
Posteriormente os cristãos primitivos usaram-se dessa filosofia e incorporaram Kairós como o tempo divino, o tempo da graça em oposição ao tempo cronológico do homem. Lembrando que boa parte da teologia cristã dos primeiros tempos se deu em regiões helenizadas, ou seja, de mentalidade grega (Península Balcãnica e Ásia Menor). 
E o seu tempo é regido por Cronos ou por Kairós?


P.S.: Essa reflexão é resultado da interessante reunião pedagógica de final de ano coordenada pelo pessoal da Pastoral. Na ocasião foi dado ênfase no Kairós cristão, o contrário do que tentei fazer aqui.
P.S.2: Nas mitologias como um todo há inúmeras versões para o mesmo mito dependendo do período histórico e da região onde foi registrado determinado mito. Aqui escolhi uma das versões mais populares e imortalizada por poetas e filósofos.

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