terça-feira, 23 de agosto de 2011

Forças Armadas, maus tratos e a sociedade brasileira

Imagino que não fui o único a ficar impressionado com a notícia de que mais de 50 recrutas da Marinha foram internados no Rio neste dia 20 de agosto último. Meu incômodo maior foi por ter ficado impressionado não com o fato em si, mas com o número de aspirantes a fusileiros navais internados provavelmente por "treinamento excessivo", um eufemismo para maus tratos. Digo que fiquei incomodado porque é já tão comum os maus tratos vez ou outra não me chamam mais a atenção: foram necessários 57 homens internados, alguns na UTI, para que eu voltasse a pensar no absurdo desse tratamento dado aos praças.
Há um certo mito de que o rigor destes treinamentos fortalece o soldado e o prepara melhor para o combate, razão de ser das Forças Armadas. É verdade que o militar não está ali para fazer exercícios como na aula de Educação Física do colégio, mas tenho minhas dúvidas de como humilhações, falta de água ou, muitas vezes, práticas idênticas à tortura, fazem de um jovem aspirante um soldado superior.
Além disso, há ainda a crença de que se trata de um ritual de passagem, algo como um batismo. Depois de superar esta fase o indivíduo será finalmente aceito em sua nova vida. É a mesma lógica do trote universitário e, justamente por ser entendido como um rito obrigatório, acaba se perpetuando. "Neste ano fui humilhado para ser aceito, no próximo humilharei o calouro". Esta batismo violento me assusta particularmente nos caso de profissões que lidam com gente em seu cotidiano. Qual a tolerância à violência ou o descaso com a vida humana que terá um jovem médico ou policial?
Em todo caso, o episódio recente da Marinha me fez lembrar outro acontecimento da mesma corporação, mas há 100 anos.
Em 22 de novembro de 1910 cerca de 2.300 marinheiros se rebelaram (ou amotinaram, na linguagem militar) no Rio de Janeiro matando oficiais e tomando navios. As reivindicações não era política, não se pretendia derrubar o governo ou instituir um novo regime, apenas queria o fim dos maus tratos, dos castigos físicos com chibata - daí seu nome -, melhores soldos e melhor alimentação.
A Revolta da Chibata ocorreu no interior da única das Armas Militares que ainda usava o castigo físico como norma e a mais aferrada ao passado. Pouco moderna, ainda era grande, por exemplo, o número de oficiais monarquistas. No entanto, o que ficou mais explícito foi o componente etnico-social. A esmagadora maioria dos marinheirros era composta de negros e mulados advindos das mais baixas camadas sociais, enquanto o oficialato era branco e de melhores posses. Se não bastassem os maus tratos em si, esta estrutura relembrava os tempos da escravidão abolida havia 22 anos.
As reivindicações acabaram atendidas e os marinheiros anistiados pelo Congresso Nacional, porém uma revolta de fusileiros logo tempo depois "permitiu" que a Marinha fizesse o que antes não tinha sido possível. Reprimiu violentamente os fusileiros da vez e os marinhos da revolta passada.
Da Revolta da Chibata sobraram a memória de seu principal líder João Cândido, o "almirante negro", e a sensação de que depois de 100 anos a Marinha ainda acredita que disciplina se consegue com violência.


Para ler +
Revolta da Chibata: 100 anos
Relembramos um personagem pouco conhecido
Por Ronaldo Pelli

O marinheiro bordador
Duas toalhas de rosto bordadas pelo líder da Revolta da Chibata mostram os valores que defendia e revelam um pouco de seus afetos, sua dor e sofrimento
Por José Murilo de Carvalho

Revolta da Chibata
Post antigo sobre a exposição virtual organizada pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Segundo o dicionário, liberdade de pensamento é o "direito que cada um tem de expor suas opiniões, crenças e doutrinas", e este direito é garantido aqui. No entanto, qualquer comentário sexista, racista ou de algum modo ofensivo será apagado.